Wander Emediato, da Fale, lança livro sobre o debate de polêmicas e ‘temas sensíveis’
Em doze artigos, pesquisadores da área de análise do discurso mergulham em temas controversos da recente história brasileira, como a "escola sem partido" e o relatório da Comissão da Verdade
As primeiras duas décadas do século 21 foram particularmente frutíferas, no Brasil, para as polêmicas públicas e o debate sobre temas sociais sensíveis. Só nos últimos anos, estiveram em discussão assuntos como o aborto, a homofobia, o racismo, a democracia, o projeto Escola sem Partido, o relatório da Comissão da Verdade, os projetos de lei conservadores, as desigualdades sociais, a imigração e os refugiados, a ciência e o pensamento iluminista, a ditadura brasileira e o holocausto alemão, a tortura política e a extrema-direita, as tragédias humanitárias e os crimes ambientais, a corrupção, a politização religiosa e até mesmo o ensino da língua portuguesa.
São temas que suscitam debates intensos e polarizados, afetos e subjetividades – muitas vezes, até mesmo a violência verbal. Mas debatê-los, sem ceder à tentação de contorná-los, é fundamental para a democracia, pois ela não é o regime do consenso, mas do dissenso e do debate, e o silenciamento de debates serve quase sempre à manutenção do status quo e de seus contextos de opressão e assimetrias sociais.
É essa noção, de estímulo à cultura do debate e do dissenso, que atravessa o mais recente livro produzido nos gabinetes de análise do discurso da Faculdade de Letras da UFMG, o volume Interações polêmicas e violência verbal em temas sociais sensíveis, organizado pelo professor Wander Emediato.
O livro será lançado nesta sexta-feira, 2, às 14h, na sala 4063 da Faculdade de Letras (Fale), em evento promovido pelo Núcleo de Análise do Discurso da Fale, coordenado pelo organizador do volume. Além de Emediato, alguns dos autores dos textos da coletânea participarão do lançamento para fazerem uma apresentação do livro, que será seguida de um debate sobre a função da polêmica pública na sociedade democrática e as singularidades das pesquisas sobre temas considerados sensíveis. A obra já pode ser adquirida no site da Pontes Editores.
Compreender a polêmica pública
Interações polêmicas e violência verbal em temas sociais sensíveis reúne uma série de análises em diferentes meios. Nos 12 capítulos do volume, 13 autores – incluindo o organizador – se aprofundam na análise dos principais temas elencados no início deste texto (o relatório da Comissão Nacional da Verdade, o projeto Escola sem Partido, o imaginário brasileiro sobre os migrantes venezuelanos etc.) de modo independente. Contudo, se cada texto analisa uma polêmica pública ou tema social sensível específico, um objetivo comum atravessa todos eles: o de aumentar a compreensão sobre os modos de funcionamento da polêmica pública e suas características discursivas, enunciativas e argumentativas.
“A argumentação é uma faculdade que nos permite orientar as nossas decisões. E ela é fundamental para a democracia. Para muitos, os debates intensos travados no espaço público são indesejáveis e mesmo insuportáveis. Mas o silenciamento da controvérsia não é uma opção para a democracia, pois a democracia não é o regime do consenso a qualquer preço, ao contrário, é o regime do dissenso, do debate, da defesa de opiniões, da organização das opiniões em doxas legítimas e reputáveis”, anota Wander Emediato na introdução do volume.
Advindo da filosofia, o termo doxa refere-se às ideias e juízos tomados, de forma generalizada por uma sociedade, em um determinado momento histórico, como verdades. São crenças cristalizadas, que, muitas vezes, por serem considerações naturalmente provisórias, eventualmente se revelam como ingênuas, quando sabatinadas pelos processos de construção sistemática de conhecimento. Nesse processo, contudo, a humanidade avança, e a Doxa se aprimora continuamente. No livro, o que se buscou foi justamente “mapear temas que suscitam a subjetividade, os afetos, os posicionamentos dóxicos e as decisões políticas”, exemplifica o organizador.
Reconciliação com o humanismo
“O livro não veio para propor soluções para todos os males da terra. Mas, para mostrar que, pelo viés da análise do discurso, mesmo fatos difíceis de suportar (mais para uns que para outros) podem ser analisados”, anota a professora da Faculdade de Letras Ida Lucia Machado no prefácio do volume. “Com espanto e tristeza vejo uma espécie de fascismo ressurgir, disfarçada de ‘boas intenções’ em discursos políticos que estão levando ao poder homens e mulheres. Certos partidos políticos, com seus discursos (alguns são aqui analisados) contêm algo dessa praga. O ódio ao outro. A violência. É toda uma maneira de ser, de pensar, que não gosta de livros e que, certamente, condenaria um livro de análise do discurso como este”, demarca a prefaciadora.
Em sua introdução, Wander lembra que não se deve confundir debate e dissenso com aquele discurso extremista que tenta se amparar em uma suposta liberdade de expressão irrestrita – a rigor, o debate visa justamente a dissolução desse discurso extremista, isto é, a sua expulsão do campo da Doxa, em que pretende figurar. “O que não se pode tolerar em uma democracia é a imposição, pela força física ou verbal, de opiniões extremas, especialmente daquelas opiniões que fogem completamente do aceitável, as opiniões vergonhosas e sem reputação, adoxais, como o racismo, o antissemitismo, o angelismo, entre outras. A doxa, esse conjunto de opiniões que nos permite discutir, escolher e deliberar, não é aleatória, ela é construída socialmente e legitimada socialmente. E ela é plural, heterogênea, contraditória e antitética, como deve ser.”
É justamente no intuito de diluir esse tipo de excrescência antidemocrática que o debate deve se inserir. “Os Direitos Humanos não são uma imposição moral sobre o mundo e sobre as pessoas, mas resultado do nosso processo civilizatório e uma consequência também de nossa barbárie, da autoavaliação de uma humanidade que busca aprender com seus erros, suas tragédias e seus próprios crimes humanitários. Não é apenas uma questão moral, de submeter-se à ordem do Bem contra o Mal. A Doxa é, sobretudo, um resultado de imperativos éticos que orientam o nosso agir, a nossa ação social dentro da ordem do preferível, daquilo que condiz com a condição humana, como o viver juntos, com o contrato social, com essa liberdade convencional que renuncia à liberdade natural para proteger direitos e resistir às tiranias. Por isso, não devemos fugir do debate nem deplorar a argumentação. É a argumentação, com suas razões e seus afetos, e suas posições antitéticas, que traduz o fator humano e nos reconcilia com o humanismo", avalia Emediato.
Livro: Interações polêmicas e violência verbal em temas sociais sensíveis
Organizador: Wander Emediato
Editora: Pontes Editores
405 páginas / R$ 66